Mudança para o ambiente que reduz custos é recorde e deve seguir em alta, mas oscilações trazem riscos
Por Roberto Rockmann — Para o Valor : https://valor.globo.com/publicacoes/especiais/mercado-livre-de-energia/noticia/2024/12/19/conta-de-luz-mais-em-conta-com-expansao-do-mercado-livre-de-energia.ghtml
Vinte e cinco anos depois da primeira migração, realizada em novembro de 1999, o ano de 2024 representa um marco histórico para o mercado livre de energia. O ambiente em que é possível escolher livremente o fornecedor de eletricidade atingiu até o início de dezembro cerca de 60 mil unidades consumidoras, das quais pouco mais de 22 mil migraram neste ano, o que representa um aumento de 58% em relação a 2023. Resultado da medida que permitiu, desde janeiro, que qualquer indústria e comércio ligados à rede elétrica de média ou alta tensão pudesse optar pela modalidade, o que reduziu o tíquete de entrada (ou seja, o gasto que a empresa tem com a conta de luz) de R$ 100 mil mensais para cerca de R$ 8 mil.
Atualmente, 40% do consumo de eletricidade do país está no mercado de livre negociação, 15 pontos percentuais acima do registrado em 2013. Esse crescimento expressivo coincide com uma maior complexidade da operação do sistema, o avanço da geração descentralizada, o surgimento de novas tecnologias como o armazenamento, o aumento dos subsídios em fontes renováveis e os impactos das mudanças climáticas sobre as concessionárias, os consumidores, o poder concedente e o órgão regulador.
O contexto traz em foco a discussão sobre o aperfeiçoamento do mercado, o direito da concorrência, a formação de preços, os subsídios concedidos e a potencial abertura total, o que incluiria até mesmo os consumidores residenciais. Desde 2017 o setor discute a atualização do modelo, quando a geração distribuída (GD) solar estava apenas nas planilhas
“O mercado deve bater mais recordes no próximo ano”, afirma o presidente da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), Rodrigo Ferreira. O crescimento atual tem sido motivado por empresas de pequenas cargas – como padarias, restaurantes e pequenas indústrias -, um perfil diferente dos anos iniciais, marcado pelo ingresso de grandes companhias. Consumidores de menor porte, na faixa de demanda de até 0,1 MW, já representam quase 40% do total de unidades que vêm optando pelo mercado livre mensalmente. Quem lidera a migração são as empresas paulistas, com cerca de 30% dos contratos. No segundo e terceiros lugares estão as empresas do Rio Grande do Sul e do Paraná.
A maior ampliação da história do segmento tem atraído empresas além do setor elétrico. O Itaú firmou parceria com a comercializadora Comerc para oferecer a migração para clientes do banco, a Auren fechou joint venture com a Vivo e Eletrobras e TIM acabaram de formar parceria comercial para criar uma ampla plataforma de negócios. “A parceria está sintonizada com o objetivo da Eletrobras de se tornar uma empresa completamente voltada para o cliente”, afirma o presidente da companhia, Ivan Monteiro. “Vai oferecer um ecossistema de comercialização com soluções completas e descarbonizadas para esse mercado”, diz o executivo.
As migrações têm sido conduzidas pelo comercializador varejista, que agrega diversos consumidores em um mesmo portfólio e se torna responsável por todas as operações e obrigações deles no mercado livre. Nesse contexto, ganham importância os mecanismos de assistência a quem, por qualquer motivo, perca seu comercializador varejista. Na crise de gás da Europa em 2022, por exemplo, muitas comercializadoras fecharam com as oscilações de preço, deixando consumidores desprotegidos. “Isso ganha uma nova dimensão em meio também às discussões da renovação dos contratos de distribuição”, diz Fabiola Sena, da FTS Consultoria. Entretanto, o responsável por essa assistência, Supridor de Última Instância (SUI), ainda não foi criado no Brasil.
O crescimento futuro do mercado dependerá, além da questão regulatória se o governo autorizar a abertura total do segmento, de como o país vai atrair novas grandes cargas, como os data centers, demanda que pode surgir inicialmente com empresas de streaming buscando maior capacidade de processamento.“Temos conversado com potenciais interessados em projetos para atender a data centers e há discussões se poderá ser via mercado livre ou autoprodução”, afirma o presidente da Elera Renováveis, André Flores.
A ampliação recorde do mercado neste ano coincidiu com oscilações dos preços no ambiente de livre comercialização, o que levou algumas comercializadoras a terem problemas e reacendeu a discussão sobre aperfeiçoamento das regras de segurança e garantias financeiras de um setor que movimenta mais de R$ 160 bilhões anuais. A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) encerrou em outubro o período de testes do monitoramento prudencial de mercado, que durou 12 meses. Enviou o diagnóstico da importância da medida e de observar indicadores de estresse para a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que pode ser o ponto de partida para um sistema mais sofisticado de garantias.
Futuro do negócio depende da atração de cargas como data centers
“Começamos um movimento de virada de chave para o setor, uma transformação extremamente necessária nesse cenário de abertura do mercado, diferentes estratégias de negócios e aumento considerável no volume de transações”, diz o presidente da CCEE, Alexandre Ramos. “Continuaremos trabalhando para a evolução do mecanismo e para a regulação dos próximo passos da nossa proposta estratégica de avanços na segurança do setor: a implementação de sanções e, finalmente, de salvaguardas financeiras para as operações do mercado de curto prazo”, afirma Ramos.
O mercado livre convive com o crescimento da GD solar, que responde hoje por cerca de 35 GW de capacidade. O presidente da Associação Brasileira da Geração Distribuída (ABGD), Carlos Evangelista, estima um crescimento de 20% para o próximo ano. Os impactos da geração descentralizada atingem os preços no mercado livre, principalmente quando as 4 milhões de instalações fotovoltaicas param de gerar e passam a consumir. No fim da tarde, o Operador Nacional do Sistema (ONS) então assiste a uma demanda instantânea a ser atendida de 33 GW, número que poderá chegar a 50 GW em 2028, de acordo com estudos do órgão.
Hoje essa energia não participa dos cortes de geração renováveis que o ONS tem de fazer na operação do sistema. Isso traz reflexões. Em recente relatório, a consultoria PSR aponta que uma “questão relevante é a necessidade de que a geração que não participe do despacho descentralizado também assuma uma parcela associada aos cortes”.
De outro lado, o crescimento do mercado livre tem sido impulsionado pela expansão de fontes renováveis, o que por sua vez tem impactado os subsídios. No próximo ano, a conta de subvenções paga por todos os consumidores deve chegar a R$ 40,6 bilhões, segundo a Aneel, alta de 10% em relação a 2023. A principal razão do aumento diz respeito aos descontos custeados por meio das tarifas, principalmente aqueles para os consumidores que estão no ambiente de contratação livre e adquirem energia de fontes incentivadas. O aumento em relação a 2024 é de R$ 3,6 bilhões.
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